quarta-feira, maio 04, 2011

PAPEL ENCONTRADO NO BOLSO DO CASACO


"Como vamos dormir esta noite? Sem olhar pra trás ou com a certeza que tentamos tudo? Não quero mais perceber onde entrei. Mas por que é que fui deixar acontecer? Tava na cara que a cara estaria estatelada no chão, como agora.
Tenho meu coração nas mãos e queria guardá-lo numa caixa; deixar embaixo de uma figueira. Alguém um dia talvez o encontre e ateie fogo, para que nunca mais ouse bater, mesmo que desconectado de suas linhas.
Será que é melhor permanecer dentro de casa? Dormir na cama fria do lençol novo e só trocar quando já estiver puído?"

Agora que esse papel vei ter às minhas mãos, agora que já estou sendo outra, reflito: na água da fonte, reflito meu rosto, minha cara lavada com fome de vida, que nem Macabéa.
Não se pode fazer nada meu filho - diria D. Alcinda para meu tio. Não se pode achar que tens a vida nas mãos como se segurasse um cavalo, pelas cordas ou pela crina. Nem mesmo dos cavalos o homem tem o controle. A vida empina, a vida dá coices. A vida dá pra você um monte de coisas, e o que você faz com elas? Amontoa no lixo fora de casa?

Comecei assim a pensar na compostagem, reciclagem. A casca da laranja nunca vai voltar a ser casca da mesma laranja. Mas irá ser tantas outras coisas, até de repente, quem sabe poder virar uma outra laranja, num outro tempo, de um outro jardim.
D. Alcinda, uma mulher grande, que impunha uma impunhadura apenas com seu cheiro, ocupava todos espaços. Meu tio, foi apaixonado por aquela mulher que lhe ensinou muitas coisas sobre a biologia da vida. Ensinou a ele que quando se pára pra pensar no tempo que se passou, é como se de repente estivesse a varrer o chão que acabou de ser encerado. Mas o tempo não pára. E você fica pra trás amontoado nestas angústias do que foi feito de si. Então tire a cabeça do buraco, larga a vassoura. E procure ir sujar o quintal do vizinho, encha suas mãos de lama, para pelo menos ter o que limpar. Limpeza da pele toda, da carne das unhas dos pés ao último poro do couro cabeludo.
Esta noite sonhei um monte de coisas. E delas nasceu D. Alcinda, nasceu meu tio. E agora estou limpando a minha casca, a minha casa, a minha laranja, o meu tempo. Acabo de me jogar na fonte, e meu rosto só reflete aquilo tudo que ainda não vivi.

Que venha então o reflexo do Sol nas águas do meu coração!!!!

Foto tirada de http://www.fanfiction.com.br/viewstory.php?action=printable&textsize=0&sid=66065&chapter=all




Sem comentários: